quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Auschwitz

Sobrevivente de Auschwitz

A vida universitária e a minha produção de pesquisa levaram-me a lugares que nunca teria ido por minha própria vontade ou lazer. Houve incursões de longo percurso geográfico, como os meses que vivi em Moçambique e outras que foram viagens ao mundo próximo, mas desconhecido.

Antropóloga urbana, a maior aventura foi sair da minha rua, do meu bairro, e conhecer lugares “ermos e de difícil acesso” no dizer do cronista João do Rio. Nas idas a terreiros de umbanda e candomblé nas periferias da cidade, descobri um universo distante da minha vida de família de classe média confortável. Vivi três meses em uma casa de culto na Baixada Fluminense e pude ver, como João do Rio, que por aqueles corredores estreitos passava um resumo de nossa sociedade. 

Em outras viagens o deslocamento geográfico levou-me a paragens e culturas bem distantes. Em 2000, por exemplo, fui à Polônia para a 50ª Reunião dos Americanistas em Varsóvia. Não saí do país. Fiquei impressionada com sua história. Uma história de derrotas, de dominação estrangeira de séculos, e de constantes reconstruções. O congresso dos Americanistas ocorreu nas salas confortáveis da Universidade de Varsóvia. Entre as “atrações” oferecidas aos congressistas havia tours a Auschwitz - no final de janeiro último completaram-se 70 anos depois da libertação do campo nazista pelo exército soviético. 

Quando vi o primeiro cartaz anunciando um dos “tours” me lembrei que antes de partir para o congresso minha amiga Monica Grin, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, me instou a visitar Auschwitz e afirmou que eu não poderia perder esta oportunidade única. Relutei quando ela falou sobre isso e disse que não iria. Porém, depois dos anúncios e convites, decidi acompanhar um dos grupos. 

O caminho da cidade até o campo não era longo. Acho que levamos cerca de uma hora, passando em meio a longos trechos de um vazio aterrador, onde de vez em quando se via uma fábrica com grandes chaminés, algumas parecendo desativadas. Quando chegamos a Auschwitz a primeira coisa que vimos como um fantasma foi o seu sinistro portão de ferro no qual aparecem as letras que desenham a frase infame “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta). 

Esse enorme complexo ao sul da Polônia havia sido construído pelos nazistas para servir de campo de extermínio e local escolhido para a “solução final”, disse nosso guia polonês em inglês rudimentar. Aprendemos que as edificações foram construídas onde antes havia uma pequena cidade de nome Brzezinka (em alemão Birkenau) que em polonês significa floresta de bétulas, uma espécie da família dos carvalhos. Entre 1942 e 1944 judeus de toda a Europa foram transportados em trens para morrerem nas câmaras de gás ou de fome e doença naquele lugar tétrico. Estima-se que neste campo  foram mortos mais de 1,3 milhão pessoas, 90% judeus. 

O jovem guia polonês, muito branco, conduzia-nos pelo cenário de horrores. Ao passarmos por uma espécie de instalação em vidro com restos de cabelos dos mortos nas câmeras de gás, o guia com voz calma disse que a “solução final” era um empreendimento racional que não visava apenas fazer sofrer. O processo tinha como objetivo matar o máximo de judeus em menor tempo e com menor custo.
Foi nessa hora que o chão se abriu e eu acordei sentada em um banco, sendo abanada por algumas senhoras que me ofereceram água. Não consegui acompanhar mais o grupo e voltei para o ônibus. Na viagem de volta do terrível tour, o guia levou os visitantes para um lanche no McDonald's. Nem pude sair da cadeira onde estava sentada e me maldisse por ter embarcado na viagem “turística”.

O dia 27 de janeiro, quando os campos de extermínio foram libertados em 1945 pelas tropas soviéticas, é até hoje comemorado como o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. Em 2002 a Unesco declarou o campo de Auschwitz-Birkenau como Patrimônio da Humanidade. Este complexo é hoje dirigido e organizado pelos poloneses, mas o guia contou que a responsabilidade da administração é contestada por Israel e por muitas entidades judaicas que reivindicam para si o trabalho de manter viva a memória do que é considerado o maior genocídio da história. 

Não tive forças de ir até o fim daquele trem fantasma, mas conto essa história para me juntar às homenagens do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. Esta visita ao maior campo de extermínio serviu para que eu aprofundasse minha convicção da imensa loucura de qualquer mundo que viva em nome da pureza da “raça”. 

Em muitas outras regiões do planeta tragédias semelhantes ocorreram e ocorrem também em nome da “raça”, da “religião” ou da “etnia”. Auschwitz não pode ser esquecido porque ali morreram milhões de judeus e outros perseguidos pelos nazistas. Hoje transformou-se no maior símbolo de que é preciso não silenciar quando o fantasma do ódio racial, religioso ou “étnico”, como alguns gostam de definir, começa a despontar em uma situação histórica qualquer.

Quantos silenciaram diante das enormes colunas de fumaça que espalharam cinzas pelos lugares que pisei durante aquele tour com reverência e terror? É preciso não esquecer e Auschwitz está lá para nos fazer lembrar.

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